Série Crack, de Aisar Jalil Martinez

A Série Crack traz uma reflexão do artista Aisar Jalil Martinez sobre o universo do crack na região central de São Paulo. Um elemento essencial está na proximidade entre esses moradores de rua e seus cães. Outro fator que ainda conecta esses indivíduos do cotidiano é a proximidade entre eles junto a fogueiras à noite. No entanto, pelo uso da droga, as fronteiras entre o chamado real e o considerado imaginário se diluem. Surgem estados de delírio e o dia a dia se metamorfoseia. Pessoas se tornam minotauros e faunos; e as pombas que se alimentam de resíduos ganham aspectos de corvos e urubus. Nessa mescla, parece não haver oportunidade e renascimento. A noite existencial se instaura.

O mundo daqueles que estão mergulhados no crack é pleno de incertezas. Os delírios levam a uma visão distorcida do mundo em que pessoas e animais se misturam. Os maiores medos se tornam realidade em visões assustadoras. Cobertores usados como proteção ao frio à noite tornam os moradores das ruas múmias sem sarcófagos. Fantasias denunciam as tensões de uma existência violenta com ameaças constantes à vida própria e alheia em um universo permeado por uma sexualidade fantasmagórica em que não diálogos, mas conflitos. Os olhos multiplicados ou deslocados dos personagens representados aludem, portanto, a uma ausência de qualquer tipo de esperança.

O universo que envolve o uso do crack é de mistério. Os desencontros são maiores que os encontros numa atmosfera em que pessoas, cães e aves se mesclam no plano de delírio permanente individual e coletivo. O medo e o caos são as palavras e as percepções que predominam numa realidade em que as fronteiras entre a morte e a vida estão diluídas. A violência e as trevas desnudam e eliminam barreiras entre quem é quem. A insegurança predomina e ofusca as relações de cada pessoa com ela mesma e com a sociedade.

A maneira de trabalhar os olhares merece destaque no conjunto desta série. Ao se vislumbrar o que existe acima dos personagens apresentados, surgem aves de rapina que tudo observam e estão prontas para atacar o que restou das pessoas zoomorfizadas e mitologizadas sem destino ou romantismo, consumidas física e psicologicamente pelo vício. Os corpos estão deformados. Os indivíduos se tornaram espectros de si mesmos, como esfinges gregas, com garras, asas e mamas pontiagudas. Elementos fálicos remetem ao deus grego Dioniso, com uma sexualidade descontrolada que remete muito mais a pavor do que a prazer. Nesse contexto, ninguém consegue se olhar, pois não há procuras em uma atmosfera em que predomina a percepção de estar perdido de si mesmo.

O vício do crack leva à criação de uma visão onírica plena de indagações. Não se torna possível vislumbrar com clareza o futuro. Pelo contrário, passa-se a vivenciar a ausência dele. Não há para onde ir. Os olhos se multiplicam nas imagens porque, sob efeito da droga, tudo é visto de modo a levar para novas dimensões em que há a sensação de ver mais e de também ser continuamente observado. Uma chama interna queima e aponta para uma autodestruição que é vivida, mas geralmente não percebida em sua plenitude. Quando se toma consciência dela, pode ser tarde demais para sanar alguns irreversíveis danos neurológicos. As criações de Aisar Jalil Martinez trazem assim esses questionamentos como alerta para que os usuários de crack, não só na região central de São Paulo, mas em todos os lugares, possam ser, da melhor maneira possível, amparados, tratados e reintegrados à sociedade.

Oscar D’Ambrosio
@oscardambrosioinsta
Pós-Doutor e Doutor em Educação, Arte e História da Cultura, Mestre em Artes Visuais, jornalista, crítico de arte e curador

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